Sílvio, duelista apresentado por Pushkin em “O Tiro”, podia até ser um sujeito bravo, destemido, mas era também um personagem perdido na vida e carcomido pela inveja. O interior de sua casa, simplório e com as paredes cravejadas de tiros, era um espelho de seu próprio mundo interno, e seus dois únicos luxos, o champagne, que lá fluía como rio, e a coleção de pistolas, eram o alimento de sua alma ébria do desejo de vingança.
Antigamente Sílvio era o maioral entre seus colegas militares, foi assim até a chegada de outro sujeito tão carismático quanto ele, porém mais jovem, mais rico e esmerado em tudo quanto fazia. Esse novato tentou se aproximar de Sílvio mas foi rejeitado, só que o sujeito lidou tranqüilamente com a rejeição, o que feriu profundamente o ego do ex-maioral. Sílvio passou a provocá-lo, todavia as provocações eram retribuídas com tiradas ainda mais espirituosas, e Sílvio não agüentou: cego de inveja, ao ver o rapaz receber atenção especial de uma moça com a qual tinha um caso, resolveu dizer uns desaforos ao rival e foi esbofeteado. Os dois marcaram um duelo para acertar a questão, mas Sílvio não se animou a disparar, pois seu adversário comia cerejas, aparentemente indiferente ao próprio destino. Sílvio, então, resolveu esperar até que o outro tivesse algo a perder, até que ele temesse a morte, para descarregar seu tiro.
Ou seja, Sílvio esnobou o cara, provocou-o largamente, deixou de concluir o duelo por capricho e se enterrou numa vida embalada pelo ressentimento e pelo desejo de vingança.
É como já ouvi um dia: “Quem lasca nossa vida é nóis mesmo.”
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Bragança Paulista, 2019